Escrevendo um romance: a psicanálise por trás da Jornada do Herói


Ei, você que caiu aqui de paraquedas, é muito importante que leia o nosso post anterior sobre a Jornada do Herói para ficar por dentro de tudo!
Bom, como comentei anteriormente, Campbell se baseou na psicanálise e em diferentes mitos de diversas culturas para criar a Jornada do Herói, por isso vemos elementos como: “mulher como tentação”, “encontro com o pai”, “encontro com a deusa”; que se assemelham a diferentes histórias religiosas, sejam elas monoteístas ou politeístas, onde, por exemplo, vemos a mulher como a encarnação do pecado, isso fica bem claro em Adão e Eva, a Caixa de Pandora...
Para entender um pouco mais, temos que recorrer a Freud e a sua obra chamada Totem e Tabu, a qual apresenta muitos aspectos interessantes que Cambpell pode ter relacionado/utilizado ao criar a jornada.
Nessa obra, Freud cria seu próprio mito, o Mito do Pai da Ordem Primeva, para explicar como foi criada a base de toda a sociedade que mantém duas leis no geral, a do parricídio e a proibição do incesto, além de abordar um pouco do conceito religioso em relação à figura de um totem.


Basicamente, ele conta história de uma tribo com um pai proibitivo que possuía todas as mulheres para ele. Uma vez que os filhos homens atingiam uma certa idade, ele os enviava para longe para manter o seu poder e continuar desfrutando de todas as mulheres só para ele. Esses filhos, vendo as injustiças do pai, se juntam para derrota-lo e voltam para a tribo, juntos o matam e realizam um ritual onde comem partes de seu corpo, acreditando que assim poderão absorver parte de sua força e poder; com medo de que algum dos irmãos tome o lugar do pai, eles fazem um acordo de que ninguém ocupará o seu lugar para que a situação não se repita. Então surge um sentimento de culpa/remorso por parte deles, que faz com que os irmãos passem a venerar o pai falecido, desejando ser tão poderoso quanto ele, passando a transformar a figura do pai em um totem que causará o mesmo efeito de quando ele estava vivo. A sua imagem é uma recordação de que eles não devem matar o próprio pai (com medo que a história se repita com futuras gerações da tribo) e que não devem relacionar-se com sua irmã ou mãe, saindo à procura de uma mulher de outra tribo.



Segundo Freud, assim foram construídas a base das sociedades e leis que continuam até hoje, além de que podemos observar que toda sociedade foi criada ao redor de uma espécie de totem que lembra as pessoas das principais leis que devem ser obedecidas pela figura de um “pai” (seja ele Zeus, Deus, Rá, Tupã...). Os próprios Obeliscos, que estão em vários países do mundo, são totens!
E eu contei toda essa história para falar do superego e da figura paterna que podemos ver no “encontro com o pai” de Campbell. O superego é a parte moral da psique, é ela quem contém todos os valores morais, além de ter um papel criticador e controlador dos impulsos primitivos, mas por que eu estou falando de superego?
Bom, o superego é herdeiro do Complexo de Édipo, isso significa que quando ocorre o sepultamento do complexo (e alguns outros elementos envolvidos que não vem ao caso agora), é criado o superego, que pode ser mais ou menos “cruel” de acordo com as proibições impostas na infância.
Podemos falar um pouco dos temores do personagem e da moral dele, como ele vai encarar os desafios da jornada. Se é de uma forma mais tranquila ou super auto-punitiva lembrando de um “pai” super proibitivo. E quando dizemos “pai”, nos referimos a uma pessoa que ocupa essa função e não sempre ao pai biológico. O superego pode ser representado, de forma escrita, como aquela voz da consciência que diz “você nunca vai conseguir sobreviver, melhor ficar onde está” ou “você pode não conseguir, mas não custa nada tentar e salvar o mundo”. Pensando em outra característica, que não está tão diretamente relacionada ao superego e sim a outros fatores conjuntos, podemos decidir também se o personagem é mais reservado ou mais impulsivo em relação às suas decisões.



Voltando um pouco ao superego e sua composição... O Complexo de Édipo, fazendo um resumo bem grande, seria aquela etapa no início da infância onde o filho está apaixonado pela mãe e vê o pai como rival, logo o filho deve reprimir esses desejos pela mãe (processo de castração, onde há a proibição do incesto e parricídio) e aceitar o pai também. Uma vez reprimido, aí está o sepultamento do complexo.
Na etapa “encontro com o pai”, Campbell deixa claro as primeiras relações que tivemos com os nossos pais (mãe protetora e pai como intruso), é nessa etapa que, segundo ele, o herói vai deixar de lado os seus traumas infantis, enfrenta e se reconcilia com o pai, entendendo que a mãe e o pai significam a mesma coisa, que não existe verdadeiramente um bem e um mal, porque esses dois elementos são parte de um todo. Nessa etapa o herói passa por um processo de amadurecimento e de identificação também, saindo do lugar de filho, pronto para entender que o mundo não funciona em uma dualidade, enfrentando aquilo do passado que tinha um certo controle em sua vida. É nessa hora que o personagem toma as rédeas verdadeiras da situação.



Voltando um pouco mais na linha temporal da Jornada do Herói, temos “mulher como tentação”, segundo Campbell essa é a fase representada pelas tentações que o herói deverá resistir durante a sua jornada, não sempre relacionada à figura de uma mulher, pode ser qualquer outra coisa. Ela remete a fase do Complexo de Édipo onde o filho está “apaixonado” pela mãe e deve aprender a reprimir esses sentimentos para poder viver, uma vez reprimido, algo desse desejo inaceitável ainda paira no inconsciente, mas ele pode seguir adiante. O mesmo acontece com as tentações apresentadas no caminho, o herói deve reprimir esses desejos e continuar a sua jornada, mesmo com algumas sensações causadas por esses desejos latentes que rondam sua cabeça.

Agora vamos trabalhar um pouco mais no crescimento do personagem, como podemos ver nas frases dos respectivos autores, a jornada é uma transição que pode ser comparada com a transição da adolescência com a vida adulta:

“No fundo, apesar de sua infinita variedade, a história de um herói é sempre uma jornada. Um herói sai de seu ambiente seguro e comum para se aventurar em um mundo hostil e estranho. Pode ser uma jornada mesmo, uma viagem a um lugar real: um labirinto, floresta ou caverna, uma cidade estranha ou um país estrangeiro, um local novo que passa a ser a arena de seu conflito com o antagonista, com forças que o desafiam. Mas existem outras tantas histórias que levam o herói para uma jornada interior, uma jornada da mente, do coração ou do espírito. Em qualquer boa história, o herói cresce e se transforma, fazendo uma jornada de um modo de ser para outro: do desespero à esperança, da fraqueza à força, da tolice à sabedoria, do amor ao ódio, e vice-versa. Essas jornadas emocionais é que agarram uma plateia e fazem com que valha a pena acompanhar uma história.”
- Cristopher Vogler “A Jornada do Escritor”
“O herói, por conseguinte, é o homem ou mulher que conseguiu vencer suas limitações históricas pessoais e locais e alcançou formas normalmente válidas, humanas. As visões, idéias e inspirações dessas pessoas vêm diretamente das fontes primárias da vida e do pensamento humanos. Eis por que falam com eloqüência, não da sociedade e da psique atuais, em estado de desintegração, mas da fonte inesgotável por intermédio da qual a sociedade renasce. O herói morreu como homem moderno; mas, como homem eterno — aperfeiçoado, não específico e universal —, renasceu. Sua segunda e solene tarefa e façanha é, por conseguinte (como o declara Toynbee e como o indicam todas as mitologias da humanidade), retornar ao nosso meio, transfigurado, e ensinar a lição de vida renovada que aprendeu”
- Joseph Campbell “O Herói de Mil Faces”

Para Vogler, o herói está em busca da sua identidade e é um personagem disposto a sacrificar as suas necessidades em benefício dos outros, as características estereotipadas como força, destreza e uma figura endeusada é algo que deve ser secundário e não precisa exatamente existir na composição do personagem. Ele diz que a jornada começa com a separação daquilo que é familiar (comunidade, família, tribo...) e logo segue com o personagem enfrentando diferentes facetas dele mesmo para logo concretizar o seu objetivo com uma transformação.
Segundo a visão de Campbell, a Jornada do Herói descreve a transição da adolescência para a fase adulta, um ritual de passagem, uma separação, transição... É esse o momento onde o personagem deixa para trás a sua psique infantil e retorna da jornada como adulto.
Já falamos um pouco das bases da psique infantil mais acima, agora é hora de chegar no momento mais confuso das nossas vidas e que justamente promove essa época de autoconhecimento e identificação. Vamos deixar um pouco Freud de lado e vou tocar em diferentes teorias relacionadas de Néstor Córdova, Piera Aulagnier e Adrián Grassi que falam sobre a adolescência.



Durante esse período das nossas vidas, temos que passar por um processo de historização para conhecer melhor a nós mesmos e formar-nos através da interação com outros no momento presente que vivenciamos. Piera fala de um Ego historiador que implica construir um passado para projetar o futuro, em um primeiro momento, nós recebemos os enunciados identificatórios dos nossos pais (você foi uma criança assim, assim, assado, é filho de fulano e ciclano, pertence à família tal e nós somos assim) e logo o adolescente assume o papel de criar esses próprios enunciados sozinho a partir de uma abertura ao novo, àquilo que está fora do âmbito familiar, isso é algo que exige muita criatividade do adolescente e também está relacionado à identificação de grupos.
Córdova diz que temos que passar por um processo de luto, temos que nos desfazer das figuras parentais e do corpo infantil, temos que estar de luto pelos objetos perdidos da infância para abrir espaço ao desconhecido. E esse luto não significa esquecer, pelo contrário, significa ressignificar e reelaborar o passado para criar novos sentidos no sentido hetero e extrafamiliar (diferente do familiar e fora do familiar).
Na Jornada do Herói podemos ver tudo isso desde o momento que o personagem sai da sua zona de conforto (daquilo que é conhecido, familiar, lugar onde está protegido por figuras paternas) e parte ao desconhecido que é hetero e extrafamiliar. No princípio da história, nós sabemos quem é o personagem de acordo com aquilo que é apresentado na sua apresentação e, logo, ele embarca na jornada para descobrir mais sobre si mesmo através de diferentes interações com outros e com diferentes situações.
A fase “Aproximação da caverna secreta” na Jornada do Herói de Vogler, poderia apresentar-se como essa fase de luto, onde o personagem ressignifica os pensamentos que tinha lá no princípio da história, logo, dá um novo significado e a partir das conclusões tiradas disso, pode seguir a sua jornada mais forte e independente, entendendo um pouco mais sobre si mesmo.
Para terminar, quero comentar que nesse processo de historização pode existir o que chamamos de Cripta, que é um segredo familiar que afeta a vida do personagem de maneira indireta, que é algo que ele não sabe, mas é de extrema importância. Acontece mais ou menos assim: A primeira geração sofre um trauma e não possui a capacidade de simbolizar isso em sua psique, então esse trauma se converte em algo indizível, eles sabem o que foi que aconteceu, mas não podem falar sobre isso. Já a segunda geração sente que há algo errado ou estranho na família, talvez determinadas ações tomadas pelos pais que eles não podem entender o motivo, esse trauma passa a ser inominável. Já para a terceira geração, esse trauma é algo impensável, eles não têm a menor ideia de que algo possa ter acontecido, mas esse trauma reflete de alguma forma em suas vidas, a pessoa apresenta sentimentos, sensações e pensamentos estranhos, talvez até mesmo uma sensação de não pertencer. E é o processo de historização que vai justamente tirar essa sensação estranha, quando a pessoa aprender mais sobre o passado da vida dela e da família dela, ela estará preparada para seguir adiante e planejar um futuro, para sentir que realmente faz parte.



Essa parte do segredo de família pode ser facilmente exemplificada nos livros de ficção e fantasia, por exemplo: 

1. Um personagem sente que não se encaixa no mundo normal, 
2. Descobrimos então que os familiares guardam um segredo de família sobre um passado místico, porque aconteceu algo que foi traumático ou perigoso o suficiente para que eles tomassem a decisão de esconder isso, 
3. O personagem principal percebe que algo estranho está acontecendo e se depara com parte da verdade, 
4. A partir disso, ele entra de cabeça nesse mundo, descobre mais sobre o segredo da família e entende mais sobre si mesmo finalmente entendendo o lugar ao qual ele pertence, podendo assim seguir adiante para o seu “final feliz”.

Para finalizar, é importante falar do conceito de alteridade, que seria basicamente a capacidade que o jovem (na última etapa da adolescência, antes de se converter adulto) tem de finalmente entender a outra pessoa como alguém diferente de si mesmo com desejos e necessidades, gerando um altruísmo em relação à outra pessoa, e é daí que podemos ver essa característica dos heróis de dar-se pelos outros em prol a um bem maior.
Eu poderia continuar falando mais e mais sobre isso, mas vou finalizando por aqui. Acredito que esses pequenos detalhes de psicologia possam ajudar na hora de pensar mais sobre a parte interna do personagem. Isso não significa que você tenha que colocar todos esses elementos de trauma familiar, cripta, alteridade, historização e etc na sua história, é o que eu sempre digo, determinados detalhes profundos do passado dos personagens são só para os escritores, os leitores devem entender algo disso nas entrelinhas da história, sem nunca realmente estar 100% seguros de que é verdade. Afinal, nenhuma história mastigadinha é divertida
Espero que tenham gostado do post! Nos vemos na próxima.

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